Humildade clariceana

Clarice Lispector, Rio de Janeiro, 1964. Fotógrafo não identificado. Arquivo Lêdo Ivo / Acervo IMS
A humildade clariceana funciona como um guia para nos conduzirmos em nossas condutas diárias, reconhecendo nossas virtudes e nossas limitações

Falar de Clarice Lispector, talvez, seja uma audácia da minha parte. Afinal, não me considero capaz de tecer elogios a obra dessa escritora genial, incomum e inclassificável. Clarice, além de ser uma mulher discreta, culta e ávida leitora que impressionava pela beleza e inteligência, foi uma “encantadora de palavras”.

Por isso, hoje, quero enaltecer outra faceta de Clarice: a humildade. Esta é uma qualidade que sempre me fez admirá-la profundamente: uma escritora que produziu textos vivos, inquietantes, instigantes, únicos, mas sempre se orientou por um profundo senso de desafetação.

Essa característica é uma marca muito presente no comportamento da autora desde o início até o fim de sua carreira – as correspondências trocadas com amigos são uma prova inconteste dessa virtude clariceana.

Para ilustrar tal fato, segue o trecho de uma carta, datada de 24 de abril de 1943, enviada ao amigo “Chico”, o colega de redação, Francisco de Assis Barbosa: “Estou achando horrível agora o título. Uma vez, Lúcio achou melhor como nome uma frase, minha mesma, do meio: Fúria e melodia. Se você preferir diga, viu? Assim, eu posso pensar melhor, com mais dados. Por favor, tenha a franqueza de achar ruim o livro.”

Nesse fragmento, a autora pede opinião ao amigo a respeito do seu primeiro romance, cujo título é “Perto do Coração Selvagem”. Ao escrever tais linhas, Clarice demonstra despretensão e modéstia ao pedir uma avaliação sincera sobre sua obra. Após a publicação, no final de 1943, esse romance foi considerado pelo crítico literário Antonio Cândido como “um romance que faltava.” O livro, “saudado pelos principais jornais do país, foi considerado um dos melhores momentos na nova literatura moderna”.

Mesmo com toda essa repercussão, Clarice nunca demonstrou pretensão, sempre mantendo uma postura discreta e humilde quanto à sua arte. Esse comportamento da autora nos evoca virtudes tão importantes para os dias atuais, como a discrição, a reserva e o comedimento a respeito das nossas qualidades.

Hoje, o mundo das aparências domina nosso cotidiano. Tudo é feito para ser mostrado, espetacularizado. Tudo precisa ser visto e publicado. Há uma busca constante por reconhecimento que acaba, muitas vezes, por nos seduzir e nos alienar diante daquilo que realmente somos. O fato de sempre nos considerarmos conhecedores, alimentado por um aval externo que legitima esse entendimento – por vezes, equivocado -, tende a ocultar nossa visão sobre nossas reais competências e isso compromete e estagna nossa caminhada rumo ao saber.

Em diversas situações, as pessoas nos enxergam para além daquilo que realmente somos e nos enaltecem exageradamente. Nessas situações, é importante se questionar, intimamente, se que aquilo que os outros pensam a nosso respeito, nesses casos elogiosos, realmente corresponde à verdade do nosso ser, da nossa capacidade.

Receber elogios sinceros com gratidão é uma arte. Assim como desenvolver uma atitude discreta e moderada, ou seja, daquele que sabe que não é mais do que aquilo que de fato é, é essencial para o nosso processo de aprimoramento e desenvolvimento pessoal. Essa humildade clariceana é uma grande lição para nos conduzirmos em nossas condutas diárias, reconhecendo sempre a nossa real condição em relação à nossa arte, ao nosso ofício, ao nosso conhecimento e à nossa inteligência.

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